O Ceará nem começou a produzir hidrogênio verde, e já vendeu tudo

Data de publicação : 30/11/2023

Em evento da FIEC, o CEO da siderúrgica Arcelor Mittal se compromete a comprar todo o combustível que sair do Complexo de Pecém. Setor deve movimentar US$ 30 bilhões no Brasil.

Porto de Pecém, no Ceará: combinação entre localização, bons ventos e zona franca atraem investidores em hidrogênio verde (Getty/Getty Images)

Assine a newsletter
da Universidade Trisul

 

Parece uma cena de filme. No auditório lotado, o presidente da grande corporação anuncia, para a incredulidade de todos, uma mudança radical de posicionamento, que vem acompanhada de uma grande injeção de capital na comunidade. O final feliz se dá graças a uma inovação há pouco tempo considerada inviável, uma utopia. Só não é ficção: aconteceu no Ceará.

A grande corporação, no caso, é a Arcelor Mittal, uma das maiores siderúrgicas do mundo. A inovação é o hidrogênio verde (H2V). Nesta quarta-feira, 25, durante o FIEC Summit, evento promovido pela Federação das Indústrias do Estado do Ceará (FIEC), Erick Torres, CEO da Arcelor Pecém, anunciou que a empresa "não vai abrir mão de utilizar o H2V produzido no pólo de Pecém". A afirmação foi compreendida como uma espécie de compromisso de compra, uma vez que a demanda da siderúrgica compreende praticamente toda a capacidade futura do complexo. Ainda que falte assinar o contrato e cumprir as etapas dos estudos de viabilidade técnica, como ressaltou a siderúrgica em e-mail enviado à EXAME, é um compromisso que muda o jogo. “Isso significa que o consumo será interno”, afirma Ricardo Cavalcante, presidente da FIEC.

Mas, e o porto de Rotterdam, na Holanda, sócio do Complexo de Pecém e que espera receber parte desse hidrogênio para abastecer a Europa, questiona a EXAME. “Vamos ter de produzir mais”, conclui Cavalcante, com um sorriso no rosto.

O polo cearense de produção de H2V está sendo gestado há alguns anos. Na visão do empresariado local, e do atual governo do estado, trata-se de uma oportunidade histórica de colocar o Ceará na liderança de um processo de reindustrialização do país a partir de uma fonte de energia limpa. Além da injeção financeira, o movimento da Arcelor Mittal foi comemorado por trazer, justamente, essa dimensão à indústria, setor que vem perdendo espaço no PIB ano a ano. “O objetivo é a descarbonização”, explicou o CEO da siderúrgica, em conversa reservada com a reportagem.

A Arábia Saudita do hidrogênio verde

A economia do Ceará é uma história muito mais de escassez do que de abundância. A falta de chuva, o sol escaldante e os ventos de arrancar guarda-sol pareciam condenar o cearense a uma vida de resiliência. A caatinga, bioma predominante no estado, não por acaso, é tido pelos cientistas como um dos mais resilientes do planeta, o que dá a dimensão dos desafios de se produzir qualquer coisa por lá. O que era fraqueza, no entanto, hoje é fortaleza. O sol e o vento impulsionam a produção de energia limpa, a base da transição para uma economia de baixo carbono.

Idealizado nos anos 90, o Complexo de Pecém tinha como âncora econômica a instalação de uma refinaria de petróleo, que nunca veio. Por décadas, os governos do estado lutaram para convencer a Petrobras a tirar do papel o projeto, sem sucesso. Apesar do fracasso, o plano inicial deixou como legado as fundações de uma zona industrial, que hoje se volta para o hidrogênio verde, combustível com enorme potencial para substituir os hidrocarbonetos em indústrias intensivas em carbono, como a siderurgia.

Além da abundância de vento e sol, características geográficas tornam o Ceará um local privilegiado para essa nova indústria. A viabilidade de geração eólica offshore (em alto mar) começa muito próxima à costa. Algumas centenas de metros mar adentro, há um desnível no fundo do mar, cuja profundidade atinge uma altura ideal para a instalação de plataformas, condição que se prolonga por quase 30 quilômetros em direção à Europa. O porto também oferece a rota mais rápida para se chegar de navio à Europa, aos Estados Unidos e ao Norte da África, viagens que levam, em média, uma semana.

Os planos da Arcelor Mittal

De capital indiano, a Arcelor Mittal produz anualmente 7,5 milhões de toneladas de aços planos na América Latina. Sua principal unidade no Brasil está localizada em Tubarão, no Espírito Santo. Em março deste ano, a companhia adquiriu, por completo, a Companhia Siderúrgica do Pecém (CSP), que pertencia à Vale e a duas empresas sul-coreanas. A transação movimentou 2,2 bilhões de dólares (cerca de 11 bilhões de reais).

O CEO Erick Torres explica que os investimentos em hidrogênio verde estão relacionados ao compromisso global de se tornar carbono zero até 2050. “Onde é possível acelerar, estamos fazendo”, disse. A disponibilidade do combustível é essencial, e o hub cearense, segundo o executivo, oferece condições únicas de custo e velocidade de implementação. A CSP produz chapas zincadas, utilizadas, principalmente, pelas indústrias automotiva e de construção.

Junto ao complexo portuário, também foi instalada uma Zona de Processamento de Exportações (ZPE), que são “distritos industriais incentivados, destinados a sediar empresas orientadas para o mercado externo”, como explica o site do porto. Na prática, trata-se de uma zona franca, cujo objetivo é atrair investimentos estrangeiros.

Nessa combinação de recursos energéticos abundantes, localização privilegiada, estrutura industrial e desembaraço aduaneiro acelerado, a expectativa é de que Pecém seja um polo de hidrogênio com o potencial do que foi, em seus tempos áureos, o município de Macaé, no Rio de Janeiro, base das operações do pré-sal durante o primeiro governo Lula. A cidade atraiu todo tipo de empresa interessada em prestar serviço e fornecer produtos para a cadeia do petróleo. Por alguns anos, Macaé vislumbrou o enriquecimento, mas a derrocada da Petrobras e do petróleo transformou o sonho em pesadelo, e hoje Macaé tenta se reerguer das cinzas do abandono empresarial.

No Ceará, esse risco parece menor. Não só a perspectiva para o mercado de hidrogênio é melhor e de mais longo prazo (estima-se que o combustível movimentará 350 bilhões de dólares no mundo e 30 bilhões no Brasil, até o final da década), como a transição energética oferece ao Brasil, e ao Nordeste em particular, uma oportunidade de ouro para ganhar protagonismo global, fortalecer a economia e reduzir as desigualdades sociais. “Se o Nordeste falhar, o Brasil falha”, disse à EXAME Alexandre Negrão, CEO da Aeris Energy, fabricante brasileira de pás para geradores eólicos. Negrão espera uma aceleração dos investimentos a partir do compromisso feito pela Arcelor Mittal, e se diz preparado para atender a demanda dos projetos offshore cearenses.

“Precisamos de pouquíssima adaptação para isso. A indústria nacional de geradores eólicos está consolidada, o que facilita a decisão de investir no Brasil. Essa é uma consequência positiva dos incentivos dados ao setor nas últimas duas décadas”, afirma Negrão. Uma política mais clara e efetiva de fomento ao setor, por sinal, era a principal demanda dos executivos e empresários no evento da FIEC. A segunda mais importante era para o governo, se não for ajudar, pelo menos não atrapalhar.

 

FONTE: MO Ceará nem começou a produzir hidrogênio verde, e já vendeu tudo | Exame